Roberto Burura


ALÉM-DEUS, Ode a Fernando Pessoa. 2012. Impressão fotográfica s. tela. 80x120cm


MEMORIAL DESCRITIVO

A fotografia de Roberto Burura caracteriza-se pelo recorte inusitado da realidade. Com forte apelo grafico e utilizando-se da composição para criar imagens onde o limite entre o real e o inventado se misturam, o artista transita entre a observação, a poesia e a criação através das situações que retrata.
Um dos elementos constantes em seu trabalho são os Reflexos que, em seus recortes, trazem o espectador para dentro de um jogo, onde o ver gera um outro reflexo, reflexão.
A escolha de Burura para trabalhar a obra de Fernando Pessoa é fruto de sua forte ligação com a poesia e com o estudo da espiritualidade e das correntes religiosas e esotéricas. Algumas de suas imagens nascem de um momento meditativo, onde a paisagem retratada e o observador se fundem num não limite. E esta definição vale tanto para o fotógrafo quanto para o Poeta. Fernando Pessoa, que em sua vida se interessou pelos estudos esotéricos e trouxe para sua poesia uma amplitude de visão e melodia que transcende as esferas do material, é, em seus poemas, fonte prazeirosa de mergulhos no mundo exterior e interior. Nas palavras do Poeta, tirados de um apontamento sem data, ele observa: “Todo estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem”.
A obra de de Roberto Burura, ALÉM-DEUS Ode a Fernando Pessoa, que faz parte desta exposição é o registro de uma paisagem, de um estado de alma, que na vida pode-se encontrar refletida no mar, nos rios, nos Tejos de cada um.

ALÉM-DEUS
I / ABISMO



Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?



Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.



Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...



E súbito encontro Deus.



                                    Fernando Pessoa - Cancioneiro - 1913



Apontamento solto de Fernando Pessoa; s.d.
Todo estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que não se queira admitir que todo estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo estado de alma se pode representar por uma paisagem.






BREVE CURRÍCULO DO ARTISTA
Roberto Burura é fotógrafo, produtor e diretor de rádio, TV e cinema. Formado em Comunicação na UFES e em Fotografia no El Camino College (Los Angeles, EUA), com especialização em Cinema e Vídeo na UCLA (Los Angeles, EUA). Trabalhou na Califórnia, fotografando grandes nomes da música americana para revistas de rock e fanzines. No Brasil, tem fotos publicadas em diversas revistas, jornais e livros. Trabalhou com fotografia de moda e publicidade. Participou de várias exposições coletivas e montou a individual “Tons e Cores”, na Galeria do Palácio do Café, em Vitória. Sua mais recente exposição Individual foi na Galeria Espaço Universitário na Ufes em 2010. Produziu e dirigiu DVD’s musicais, fotografou curtas-metragens e atualmente trabalha como diretor de programas de TV.



No Site www.umfernandopessoa.com, uma boa fonte de informações e análises da obra do Poeta Português, encontramos o texto do especialista Nuno Hipólito que analisa a série “Além-Deus”. Segue trecho:



O poema "Abismo" insere-se numa série de poemas intitulada "Além-Deus", escrita por Fernando Pessoa em nome próprio numa data desconhecida (provavelmente 1913), mas certamente anterior a 1916 visto que estava previsto ser editado no número 3 da revista Orpheu, que nunca chegou a sair.



A série "Além-Deus" é uma série de poemas esotéricos e, como tal, o poema "Abismo" deve ser lido nessa perspectiva. Todos os poemas desta série são como uma espécie de degraus para o poeta atingir um patamar superior de compreensão do mundo (e do além-mundo). A prova maior que estes poemas são esotéricos está na própria análise dos mesmos, sobretudo da abertura "Abismo":



Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?



Como indica Dalila Pereira da Costa no seu livro "O Esoterismo em Fernando Pessoa" (1971),a págns. 75 e segs, em "Além-Deus" Pessoa procura um entendimento pela contemplação pura: "Olho o Tejo, e de tal arte / Que me esquece olhar olhando". É contemplando que o poeta abandona a sua própria realidade finita e consegue um acesso imediato a uma outra realidade para além dele próprio. O olhar fixo para um objecto exterior (o rio) é o veículo para esse abandono, e para que Pessoa passe a "olhar-se de fora", vendo o significado do que é "ser-rio" e estar a olhá-lo. Este princípio - não devemos esquecê-lo - está presente em muitos textos de Pessoa: a oposição entre viver e pensar, entre ser e olhar. Embora neste poema o "olhar" possa ter um significado maior, ele nunca deixa de significar o acto contínuo de isolamento para fora de si próprio, e de uma afirmação peculiar da solidão que vive quem analise a realidade exterior. Se entendermos algo, deveremos entender que o poeta se isola de tudo o resto quando passa a observar - ele deixa de viver para passar a contemplar.



Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.



Perdendo a realidade imanente (a realidade quotidiana que todos nós conhecemos dentro de nós mesmos), ele "sente de repente pouco". Na realidade, a fuga à realidade imanente traz-lhe um "vácuo", em que um momento e um lugar se fixam no tempo, e "tudo de repente é oco". O mundo exterior passa a ter um significado diferente, porque o poeta pensar ter um acesso privilegiado a uma condição de pensamento que lhe permite colocar-se do alto para olhar o mundo. É um ponto de vista "mais que exterior". Pode ser apenas, como aventa Dalila Pereira da Costa, uma anulação própria de um estado contemplativo (afinal quantos homens santos não terão sentido o mesmo, pensando compreender sozinhos toda a realidade?), mas penso que não é apenas isso.



Toda a contemplação em Pessoa, mesmo a esotérica, tem um sentido interior muito vasto. É uma maneira de ele se sentir sozinho com a sua própria missão de vida. Olhar é ver realmente, sem nunca ignorar que estamos a olhar. Mesmo que tudo se anule pelo acto de fixarmos o olhar num objecto fixo e no seu significado, o ser nunca perde a consistência de ser, mesmo que seja completamente vazio. Quase se pode dizer, filosoficamente, que o ser-para-o-mundo, se esvazia para um ser-para-o-nada. Mas não deixa de existir - mesmo vazio. É aliás, precisamente vazio que este ser melhor compreende tudo o resto; o estar vazio permite-lhe encher-se de significados que não são dele, mas adquiridos directamente da percepção de uma realidade superior, "mais que exterior".



Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus..



"Perde tudo o ser", diz aliás, Pessoa na estrofe seguinte. Todas as ligações se perdem - todas as ligações de significado terreno, sobretudo as ligações da linguagem: a ligação entre ser-ideia-alma de nome e ele próprio, a terra ou o céu. Tudo está disconexo, como se alguém puxasse uma corda invisível que mantinha a ordem de todas as coisas e elas passassem a deambular, dançando, num vácuo absoluto, sem qualquer ligação entre elas e sobretudo sem qualquer ligação que pudesse dar-lhes um significado determinista.



E súbito encontro Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário