domingo, 18 de março de 2012

Como escrevem os artistas?


COMO ESCREVEM OS ARTISTAS?




É comum se pensar, do ponto de vista literário, que os escritores pintam com palavras, imitando os artistas plásticos em sua capacidade de explorar a visualidade do mundo. Tal propósito ganhou relevo em vários momentos da história da literatura, sobretudo, quando os literatos se inspiraram nos pintores para propor novidades estéticas: Flaubert a acompanhar Gustave Courbet em sua demolição do Romantismo expresso em O enterro em Ornans; Edmond e Jules Goncourt a transpor para a narrativa as técnicas impressionistas inauguradas por Claude Monet, ou Guillaume Appolinaire a seguir Picasso em sua “cubificação” da realidade em Les demoiselles d’Avignon, ou ainda – como observa Márcia Arbex –, Max Ernst a experimentar colagens dadá em poemas e arte surrealistas.

Mas e o que escrevem os artistas quando tocados pela ideia e pela musicalidade verbal alcançada pela métrica, rima, estrofe e ritmo, libérrimos ou não, dos poemas? Se um substantivo, nas mãos de um escritor, contornaria numa frase o rosto e a luminosidade de uma figura de Rafael; se um advérbio arremataria a posição das mãos de uma personagem de Paula Rego, como delimitariam os artistas a abstração melancólica ou o vago filosófico ou a imaterialidade de uma afeição, ainda que vazados em paisagens – nos correlatos objetivos (uma paisagem exterior a significar um estado psíquico) de que trata T. S. Elliot –, que sugerem as palavras imersas em poesia? Que cor, enquadramento ou textura eles usariam para invocar adjetivos e predicados em seus registros?

Essas são algumas das indagações que emergem da superfície dos desenhos, da fotografia, dos objetos e das pinturas inspirados na Literatura Portuguesa, e reunidos em Faluas do Tejo, exposição organizada por Attilio Colnago para Ana Terra Galeria de Arte, que tem como norte homenagear o ano de Portugal no Brasil.

Uma infinidade de opções rondaria, certamente, a escolha de temas, autores e modalidades de textos para a realização da proposta. Colnago, desenhador de poemas, selecionou para a mostra não os artistas plásticos, mas dois poetas portugueses, nascidos no mesmo período, mas com projeção e relevo diferentes: Florbela Espanca e Fernando Pessoa. Díspares em sua concepção e estilo de poesia, talvez representem, de certo modo, duas das mais destacadas linhas de produção poética lusitana: poesia do “comboio de cordas / que se chama coração” e poesia do pensado fingir completamente.

O primeiro efeito que poderia nos ocorrer, descortinado o horizonte de expectativas que tal propósito enseja é o da ilustração de textos poéticos. Não seria exato pensar, no entanto, em ilustrações, sob o risco de se esbarrar em reducionismo ou ingenuidade de leitura. Desde pelo menos os anos medievais – quando fulguram as iluminuras de toda espécie –, a ilustração é, como propõe o consenso dos dicionários, uma tentativa de explicar, sintetizar ou mesmo de decorar a edição de um texto. São inúmeros os exemplos de gravuras, fotografias, desenhos e pinturas a acompanharem as publicações em geral e, em particular, as literárias. Como visualizar os trovadores sem os desenhos informativos dos cancioneiros românicos ou góticos? Como ler Dom Quixote sem virem à lembrança as linhas precisas e sintetizadoras de Gustave Doré?

Contudo, não é ilustração o que a mostra realiza. Não se ilustram ali os versos de Espanca, a poeta dos veios passionais e pantanosos, em que pese serem floridos; nem os versos de Fernando, o poeta de vários óculos e nomes, em que pese serem paisagísticos, mesmo aqueles onde só a memória, por um fio, parece respirar. Não o são, exceto se nos lembrarmos de que uma das acepções do termo ilustração é o de interpretar, como ocorre nas aquarelas de Mário Brotas para os romances de Almeida Faria ou nos desenhos de Regina Chulam para os poemas de Maria Teresa Horta. São, especiais, leituras.

Serão verbos os gestos de cor? Serão apostos as linhas que delimitam o corpo dos objetos? Serão adjetivos as sombras a realçarem o alcance do olhar? A composição do texto pictórico ou artístico, sua imaginicidade ou iconicidade, talvez dispense esse amálgama de metáforas a tentarem aproximar a linguagem da poesia e da pintura, velhas irmãs na clássica tradição de Simônides de Ceos: “a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala”.

Bastaria pensar que a textualidade da arte – sabe-se, todo texto implica signos para além dos verbais, na grata lição de Roland Barthes –, estaria, em sua relação com a literatura e suas figuras de linguagem, na busca da descrição, da metáfora, da antítese, da caricatura e tantos outros recursos retóricos que, a despeito de terem sido originalmente pensados para o texto verbal, servem perfeitamente à arte e sua composição.

Sendo assim, isto é, sendo a arte texto, cada um dos quadros e objetos expostos em Faluas do Tejo, com o propósito de se deixar conduzir pelos poemas da Sóror Saudade e do heteronímico Pessoa, poderia ser lido como resultado da intertextualidade, na medida em que sua produção ocorre sob a condição de ser um texto em que se imiscui e se transforma um outro, mesmo sendo de outra índole sígnica. Os versos dos poetas deságuam, por assim dizer, nos traços dos artistas com o intuito de serem, os poemas, eles mesmos e, concomitantemente, outros, já que lidos e atualizados pela leitura plástica que deles é feita.



Ao procederem dessa maneira, os artistas da mostra parecem realizar, além da intertextualidade, o inverso do ecfraseamento que os poetas vêm fazendo ao longo dos anos em relação às artes.

O termo de origem grega, écfrase (ekphrasis), significa etimologicamente evidência, descrição. Assim, descrever minuciosamente uma pessoa ou um objeto implica realizar ecfrasicamente um texto verbal. Na Retórica, confundida com a descriptio, a écfrase funciona como figura de linguagem a tornar visível em verso e parágrafos os elementos ficcionais que envolvem personagens, paisagens e acontecimentos. Ampliando-se o sentido, a écfrase seria o recurso por meio do qual o escritor “pintaria” um objeto, real ou fictício, imitando o poder descritivo e evidenciador próprio da pintura, o visual.

Lino Machado, em As palavras e as cores: Guernica (e mais) na caligrafia de Carlos de Oliveira, sintetiza o conceito, afirmando que,



De saída, existem, pois, duas acepções para o conceito de ecfrase: uma, de caráter generalizante, abarcadora de quaisquer escritos descritivos, pormenorizantes, e outra, de feição mais restrita, limitada aos trabalhos que busquem traduzir, em termos verbais, o que foi já elaborado pelas artes cujo impacto nos receptores se dê principalmente por meio do sentido da visão (1999, p. 313). 



Alarga o autor essa ideia tradicional com a reflexão de Vítor Manuel de Aguiar e Silva sobre o termo: “como modalidade de ecfrase, além do labor da descrição, também [se considera] o ‘trabalho de recriação, comentário e exaltação da obra de arte (escultura, pintura, etc.)’” (1999, p. 315). Decerto, como se trata de um recurso de linguagem verbal, a écfrase estaria exclusivamente vinculada ao texto, no sentido estrito do termo, antes de Roland Barthes ampliá-lo. Para as artes plásticas, portanto – e salvo melhor informação –, inexistiria a écfrase.

Contudo, com o refinamento da teoria da literatura e da arte, tanto o conceito de écfrase como o de ilustração pode ser transmutado, adquirindo dimensões mais complexas, e aproximando e adaptando técnicas e procedimentos tradicionais de uma área (pintura) para outra (literatura), o que vem sendo ensaiado pelos críticos desde, por exemplo, as reflexões sobre Barroco e Maneirismo na literatura a partir dos princípios aplicados nas artes, não obstante essa transferência, no pensar de Aguiar e Silva, revelar-se “problemática, pois as condições ontológicas das artes plásticas, artes do espaço, e da literatura, arte do tempo, divergem profundamente” (2007, p. 449). Entretanto, é sedutora, e muitas vezes adequada, a aplicação na literatura das cinco categorias antitéticas de que se vale Heinrich Wölfflin para diferenciar a arte renascentista da barroca. Para além disso, os estudos interartes têm desenvolvido instigantes investigações sobre a relação entre as artes, de que é exemplo recente o artigo de Melânia de Aguiar e Suely Lobo, “Ler um poema: poesia e pintura em Carlito Azevedo” (2007), sobre a presença de Paul Cézanne em seu poema “Banhista”.

Seja como for, o escritor tradicionalmente pinta em prosa e poema o que os artistas plásticos realizam, como o romancista português contemporâneo, Almeida Faria, ao descrever a pintura de Cristóvão de Morais, O retrato de Dom Sebastião, de 1571, no romance O conquistador, de 1990: 



A armadura verde-escura com decorativos frisos de ouro-velho; a gola alta de onde saem as rendas da golilha subindo pelo pescoço até ao queixo; a mão esquerda pegando no cabo, decorado de pedras preciosas, da espada que se esconde atrás das pernas; o punhal à cintura; a mão direita exibindo os anéis do indicador e no dedo mínimo, delgado como o de um menino; o focinho do canzarrão farejando submissamente o dono e simbolizando a mansidão dos súbditos [...] (FARIA, 1990, p. 107).



A descrição exata do quadro coloca o leitor diante do retrato do jovem rei louro e de seu significado. A écfrase aparece no romance e o efeito é de uma pintura, não mais apenas a do português quinhentista Morais, mas a de Almeida Faria. Seria longa a explicação sobre o aspecto teórico concernente à relação entre écfrase e tradução intersemiótica, levantada por Claus Clüver, e aprofundada por Lino Machado. Para já, interessa-me, neste comentário, o efeito retórico e intertextual daquele recurso na mostra da Ana Terra. De todo modo, vale registrar que Clüver considera écfrase e transposição intersemiótica como sinônimos, diferindo-as assim da tradução intersemiótica:



Pode-se considerar todas as formas de ekphrasis como transposições semióticas, ao passo que o conceito de “tradução intersemiótica” soa melhor se restringido a textos (em qualquer sistema sígnico) que, em primeiro lugar, oferecem uma reapresentação relativamente ampla (mesmo que jamais completa) do texto fonte composto num sistema sígnico diferente, numa forma apropriada, transmitindo certo sentido de estilo e técnica e incluindo equivalentes de figuras retóricas; e, em segundo lugar, que acrescentem relativamente poucos elementos, sem paralelo no texto-fonte. Ler tais textos como traduções significa que serão lidas dentro de um estudo dos problemas da tradução [...] (CLÜVER, 1997, p. 42).



Feita a ressalva teórica, e apropriando-me da noção de transposição intersemiótica, volto aos trabalhos de Faluas do Tejo. Se é lícito considerar que o escritor pinta com palavras, não pode sê-lo menos que um artista escreve com plasticidade. Eis, portanto, a natureza da escritura dos artistas da mostra: uma écfrase invertida, em que os poemas são “evidenciados” e “descritos” por meio de composições de cor e volume, textura e gestualidade, colagem e gravação. Atrelados inevitavelmente ao visual, os artistas transpõem, intersemioticamente, o ritmo e a imagem dos poemas de Espanca e Pessoa, agora tornados “objetos” de écfrase, para seus trabalhos plásticos.

Desse modo, em certo sentido, não ilustram os artistas porque seu propósito não é explicar ou informar o que vai obliquamente nos poemas. Pretendem criar o que os textos sugerem à sua leitura, apoderando-se deles, para libertarem-se na possibilidade de lê-los e reescrevê-los – e, então, ilustram por interpretação – por meio de seus signos de linhas, cores e enquadramentos.

Sabe-se que o sentido de descrever, para além do de “expor, contar minuciosamente, seguir percorrendo” (CUNHA, 1994, p. 252), abarca o de traçar, desenhar, riscar graficamente. Sendo a écfrase uma descrição, esse recurso poderia ser usado, sim, pelos escritores, mas também pelos artistas, quando almejam tratar do que percebem visualmente no texto verbal.

Ancorados num mesmo procedimento de citação e atualização, seja verbal, seja pictórico, o intertexto e a écfrase fundamentam o que expõem os artistas de Faluas do Tejo. Descrevem o que os poemas de Florbela e Fernando insinuam em sua operação de pensamentos e sensações tornados versos.

Em vão, portanto, Florbela escreveu “Rasga esses versos que eu te fiz, amor! / Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento”. Os artistas reunidos por Attilio Colnago e Ana Coeli empreendem a leitura de diversos poemas seus e de Fernando Pessoa, retirando-os do silêncio: faluas de ritmos a conduzirem as linhas e as cores dos trabalhos plásticos, no Tejo dos portugueses, no fluir dos brasileiros.



Referências:



AGUIAR, Melânia Silva de; LOBO, Suely Maria de Paula e Silva. Ler um poema: poesia e pintura em Carlito Azevedo. In: MARI, Hugo et al. (Org.). Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2007. p. 169-182. Disponível em: http://www.ich.pucminas.br/posletras/Producao%20docente/Melania/Carlito%20Azevedo%20texto%20leitura%20-%20Suely%20-%20Melania.pdf. Acesso em: 2 mar. 2012.

ARBEX, Márcia. Intertextualidade e intericonicidade. In: OLIVEIRA, L. C. V. de; ARBEX, M. (Org.). I Colóquio de Semiótica da UFMG, Belo Horizonte, 2000. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/napg/LIVROCOLOQSEM7.doc>. Acesso em: 02 fev. 2012.

CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e sociedade: Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, São Paulo, n. 2, p. 37-55, 1997.

CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

FARIA, Almeida. O conquistador. Lisboa: Caminho, 1990.

MACHADO, Lino. As palavras e as coisas: Guernica (e mais) na caligrafia de Carlos de Oliveira. Vitória: Edufes, 1999.

SILVA, Vítor M. de Aguiar e. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2007. Maneirismo e Barroco: p. 437-502.


Paulo Roberto Sodré

Professor do Departamento de Línguas e Letras/ CCHN/ UFES

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