COMO ESCREVEM OS ARTISTAS?
É
comum se pensar, do ponto de vista literário, que os escritores pintam com palavras, imitando os
artistas plásticos em sua capacidade de explorar a visualidade do mundo. Tal
propósito ganhou relevo em vários momentos da história da literatura,
sobretudo, quando os literatos se inspiraram nos pintores para propor novidades
estéticas: Flaubert a acompanhar Gustave Courbet em sua demolição do Romantismo
expresso em O enterro em Ornans;
Edmond e Jules Goncourt a transpor para a narrativa as técnicas impressionistas
inauguradas por Claude Monet, ou Guillaume Appolinaire a seguir Picasso em sua
“cubificação” da realidade em Les
demoiselles d’Avignon, ou ainda – como observa Márcia Arbex –, Max Ernst a
experimentar colagens dadá em poemas e arte surrealistas.
Mas
e o que escrevem os artistas quando
tocados pela ideia e pela musicalidade verbal alcançada pela métrica, rima,
estrofe e ritmo, libérrimos ou não, dos poemas? Se um substantivo, nas mãos de
um escritor, contornaria numa frase o rosto e a luminosidade de uma figura de
Rafael; se um advérbio arremataria a posição das mãos de uma personagem de
Paula Rego, como delimitariam os artistas a abstração melancólica ou o vago
filosófico ou a imaterialidade de uma afeição, ainda que vazados em paisagens –
nos correlatos objetivos (uma paisagem exterior a significar um estado
psíquico) de que trata T. S. Elliot –, que sugerem as palavras imersas em
poesia? Que cor, enquadramento ou textura eles usariam para invocar adjetivos e
predicados em seus registros?
Essas
são algumas das indagações que emergem da superfície dos desenhos, da
fotografia, dos objetos e das pinturas inspirados na Literatura Portuguesa, e
reunidos em Faluas do Tejo, exposição
organizada por Attilio Colnago para Ana Terra Galeria de Arte, que tem como
norte homenagear o ano de Portugal no Brasil.
Uma
infinidade de opções rondaria, certamente, a escolha de temas, autores e
modalidades de textos para a realização da proposta. Colnago, desenhador de
poemas, selecionou para a mostra não os artistas plásticos, mas dois poetas
portugueses, nascidos no mesmo período, mas com projeção e relevo diferentes:
Florbela Espanca e Fernando Pessoa. Díspares em sua concepção e estilo de
poesia, talvez representem, de certo modo, duas das mais destacadas linhas de
produção poética lusitana: poesia do “comboio de cordas / que se chama coração”
e poesia do pensado fingir
completamente.
O
primeiro efeito que poderia nos ocorrer, descortinado o horizonte de
expectativas que tal propósito enseja é o da ilustração de textos poéticos. Não
seria exato pensar, no entanto, em ilustrações, sob o risco de se esbarrar em
reducionismo ou ingenuidade de leitura. Desde pelo menos os anos medievais –
quando fulguram as iluminuras de toda espécie –, a ilustração é, como propõe o
consenso dos dicionários, uma tentativa de explicar, sintetizar ou mesmo de
decorar a edição de um texto. São inúmeros os exemplos de gravuras,
fotografias, desenhos e pinturas a acompanharem as publicações em geral e, em
particular, as literárias. Como visualizar os trovadores sem os desenhos
informativos dos cancioneiros românicos ou góticos? Como ler Dom Quixote sem virem à lembrança as
linhas precisas e sintetizadoras de Gustave Doré?
Contudo,
não é ilustração o que a mostra realiza. Não se ilustram ali os versos de
Espanca, a poeta dos veios passionais e pantanosos, em que pese serem floridos;
nem os versos de Fernando, o poeta de vários óculos e nomes, em que pese serem
paisagísticos, mesmo aqueles onde só a memória, por um fio, parece respirar.
Não o são, exceto se nos lembrarmos de que uma das acepções do termo ilustração é o de interpretar, como
ocorre nas aquarelas de Mário Brotas para os romances de Almeida Faria ou nos
desenhos de Regina Chulam para os poemas de Maria Teresa Horta. São, especiais,
leituras.
Serão
verbos os gestos de cor? Serão apostos as linhas que delimitam o corpo
dos objetos? Serão adjetivos as
sombras a realçarem o alcance do olhar? A composição do texto pictórico ou
artístico, sua imaginicidade ou iconicidade, talvez dispense esse amálgama de
metáforas a tentarem aproximar a linguagem da poesia e da pintura, velhas irmãs
na clássica tradição de Simônides de Ceos: “a pintura é poesia muda, e a
poesia, pintura que fala”.
Bastaria
pensar que a textualidade da arte –
sabe-se, todo texto implica signos para além dos verbais, na grata lição de
Roland Barthes –, estaria, em sua relação com a literatura e suas figuras de
linguagem, na busca da descrição, da metáfora, da antítese, da caricatura e
tantos outros recursos retóricos que, a despeito de terem sido originalmente
pensados para o texto verbal, servem perfeitamente à arte e sua composição.
Sendo
assim, isto é, sendo a arte texto, cada um dos quadros e objetos expostos em Faluas do Tejo, com o propósito de se
deixar conduzir pelos poemas da Sóror Saudade e do heteronímico Pessoa, poderia
ser lido como resultado da intertextualidade, na medida em que sua produção
ocorre sob a condição de ser um texto em que se imiscui e se transforma um
outro, mesmo sendo de outra índole sígnica. Os versos dos poetas deságuam, por
assim dizer, nos traços dos artistas com o intuito de serem, os poemas, eles
mesmos e, concomitantemente, outros, já que lidos e atualizados pela leitura
plástica que deles é feita.
Ao
procederem dessa maneira, os artistas da mostra parecem realizar, além da
intertextualidade, o inverso do ecfraseamento que os poetas vêm fazendo ao
longo dos anos em relação às artes.
O
termo de origem grega, écfrase (ekphrasis),
significa etimologicamente evidência, descrição. Assim, descrever
minuciosamente uma pessoa ou um objeto implica realizar ecfrasicamente um texto
verbal. Na Retórica, confundida com a descriptio,
a écfrase funciona como figura de linguagem a tornar visível em verso e
parágrafos os elementos ficcionais que envolvem personagens, paisagens e
acontecimentos. Ampliando-se o sentido, a écfrase seria o recurso por meio do
qual o escritor “pintaria” um objeto, real ou fictício, imitando o poder
descritivo e evidenciador próprio da pintura, o visual.
Lino
Machado, em As palavras e as cores:
Guernica (e mais) na caligrafia de Carlos de Oliveira, sintetiza o
conceito, afirmando que,
De saída, existem, pois, duas
acepções para o conceito de ecfrase: uma, de caráter generalizante, abarcadora
de quaisquer escritos descritivos, pormenorizantes, e outra, de feição mais
restrita, limitada aos trabalhos que busquem traduzir, em termos verbais, o que
foi já elaborado pelas artes cujo impacto nos receptores se dê principalmente
por meio do sentido da visão (1999, p. 313).
Alarga
o autor essa ideia tradicional com a reflexão de Vítor Manuel de Aguiar e Silva
sobre o termo: “como modalidade de ecfrase, além do labor da descrição, também
[se considera] o ‘trabalho de recriação,
comentário e exaltação da obra de arte (escultura, pintura, etc.)’” (1999,
p. 315). Decerto, como se trata de um recurso de linguagem verbal, a écfrase
estaria exclusivamente vinculada ao texto, no sentido estrito do termo, antes
de Roland Barthes ampliá-lo. Para as artes plásticas, portanto – e salvo melhor
informação –, inexistiria a écfrase.
Contudo,
com o refinamento da teoria da literatura e da arte, tanto o conceito de
écfrase como o de ilustração pode ser transmutado, adquirindo dimensões mais
complexas, e aproximando e adaptando técnicas e procedimentos tradicionais de
uma área (pintura) para outra (literatura), o que vem sendo ensaiado pelos
críticos desde, por exemplo, as reflexões sobre Barroco e Maneirismo na
literatura a partir dos princípios aplicados nas artes, não obstante essa transferência,
no pensar de Aguiar e Silva, revelar-se “problemática, pois as condições
ontológicas das artes plásticas, artes do espaço, e da literatura, arte do
tempo, divergem profundamente” (2007, p. 449). Entretanto, é sedutora, e muitas
vezes adequada, a aplicação na literatura das cinco categorias antitéticas de
que se vale Heinrich Wölfflin para diferenciar a arte renascentista da barroca.
Para além disso, os estudos interartes têm desenvolvido instigantes
investigações sobre a relação entre as artes, de que é exemplo recente o artigo
de Melânia de Aguiar e Suely Lobo, “Ler
um poema: poesia e pintura em Carlito Azevedo ” (2007), sobre a presença de Paul
Cézanne em seu poema “Banhista”.
Seja
como for, o escritor tradicionalmente pinta
em prosa e poema o que os artistas plásticos realizam, como o romancista
português contemporâneo, Almeida Faria, ao descrever a pintura de Cristóvão de
Morais, O retrato de Dom Sebastião,
de 1571, no romance O conquistador,
de 1990:
A armadura verde-escura com
decorativos frisos de ouro-velho; a gola alta de onde saem as rendas da golilha
subindo pelo pescoço até ao queixo; a mão esquerda pegando no cabo, decorado de
pedras preciosas, da espada que se esconde atrás das pernas; o punhal à
cintura; a mão direita exibindo os anéis do indicador e no dedo mínimo, delgado
como o de um menino; o focinho do canzarrão farejando submissamente o dono e
simbolizando a mansidão dos súbditos [...] (FARIA, 1990, p. 107).
A descrição exata do quadro coloca
o leitor diante do retrato do jovem rei louro e de seu significado. A écfrase
aparece no romance e o efeito é de uma pintura, não mais apenas a do português
quinhentista Morais, mas a de Almeida Faria. Seria longa a explicação sobre o
aspecto teórico concernente à relação entre écfrase e tradução intersemiótica,
levantada por Claus Clüver, e aprofundada por Lino Machado. Para já,
interessa-me, neste comentário, o efeito retórico e intertextual daquele
recurso na mostra da Ana Terra. De todo modo, vale registrar que Clüver
considera écfrase e transposição intersemiótica como sinônimos, diferindo-as
assim da tradução intersemiótica:
Pode-se considerar todas as formas de ekphrasis
como transposições semióticas, ao passo que o conceito de “tradução
intersemiótica” soa melhor se restringido a textos (em qualquer sistema
sígnico) que, em primeiro lugar, oferecem uma reapresentação relativamente
ampla (mesmo que jamais completa) do texto fonte composto num sistema sígnico
diferente, numa forma apropriada, transmitindo certo sentido de estilo e
técnica e incluindo equivalentes de figuras retóricas; e, em segundo lugar, que
acrescentem relativamente poucos elementos, sem paralelo no texto-fonte. Ler
tais textos como traduções significa que serão lidas dentro de um estudo dos
problemas da tradução [...] (CLÜVER, 1997, p. 42).
Feita
a ressalva teórica, e apropriando-me da noção de transposição intersemiótica,
volto aos trabalhos de Faluas do Tejo.
Se é lícito considerar que o escritor pinta
com palavras, não pode sê-lo menos que um artista escreve com plasticidade. Eis, portanto, a natureza da escritura dos artistas da mostra: uma
écfrase invertida, em que os poemas são “evidenciados” e “descritos” por meio
de composições de cor e volume, textura e gestualidade, colagem e gravação.
Atrelados inevitavelmente ao visual, os artistas transpõem,
intersemioticamente, o ritmo e a imagem dos poemas de Espanca e Pessoa, agora
tornados “objetos” de écfrase, para seus trabalhos plásticos.
Desse
modo, em certo sentido, não ilustram
os artistas porque seu propósito não é explicar ou informar o que vai
obliquamente nos poemas. Pretendem criar o que os textos sugerem à sua leitura,
apoderando-se deles, para libertarem-se na possibilidade de lê-los e reescrevê-los – e, então, ilustram
por interpretação – por meio de seus signos de linhas, cores e enquadramentos.
Sabe-se
que o sentido de descrever, para além do de “expor, contar minuciosamente,
seguir percorrendo” (CUNHA, 1994, p. 252), abarca o de traçar, desenhar, riscar
graficamente. Sendo a écfrase uma descrição, esse recurso poderia ser usado,
sim, pelos escritores, mas também pelos artistas, quando almejam tratar do que
percebem visualmente no texto verbal.
Ancorados
num mesmo procedimento de citação e atualização, seja verbal, seja pictórico, o
intertexto e a écfrase fundamentam o que expõem os artistas de Faluas do Tejo. Descrevem o que os
poemas de Florbela e Fernando insinuam em sua operação de pensamentos e
sensações tornados versos.
Em
vão, portanto, Florbela escreveu “Rasga esses versos que eu te fiz,
amor! / Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento”. Os artistas
reunidos por Attilio Colnago e Ana Coeli empreendem a leitura de diversos
poemas seus e de Fernando Pessoa, retirando-os do silêncio: faluas de ritmos a
conduzirem as linhas e as cores dos trabalhos plásticos, no Tejo dos
portugueses, no fluir dos brasileiros.
Referências:
AGUIAR, Melânia Silva de; LOBO, Suely Maria de Paula e
Silva. Ler um poema: poesia e pintura em Carlito Azevedo. In : MARI, Hugo et al. (Org.). Ensaios sobre leitura. Belo
Horizonte: PUC-Minas, 2007. p. 169-182. Disponível em: http://www.ich.pucminas.br/posletras/Producao%20docente/Melania/Carlito%20Azevedo%20texto%20leitura%20-%20Suely%20-%20Melania.pdf. Acesso em: 2 mar. 2012.
ARBEX, Márcia. Intertextualidade
e intericonicidade. In: OLIVEIRA, L. C. V. de; ARBEX, M. (Org.). I
Colóquio de Semiótica da UFMG, Belo Horizonte, 2000. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/napg/LIVROCOLOQSEM7.doc>. Acesso em: 02 fev.
2012.
CLÜVER, Claus. Estudos
interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e sociedade: Revista de Teoria Literária e Literatura
Comparada, São Paulo, n. 2, p. 37-55, 1997.
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da
Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.
FARIA, Almeida. O
conquistador. Lisboa: Caminho, 1990.
MACHADO, Lino. As
palavras e as coisas: Guernica (e
mais) na caligrafia de Carlos de Oliveira. Vitória: Edufes, 1999.
SILVA, Vítor M. de Aguiar e. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2007. Maneirismo e
Barroco: p. 437-502.
Paulo
Roberto Sodré
Professor do
Departamento de Línguas e Letras/ CCHN/ UFES
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